quinta-feira, 7 de maio de 2020

Ainda nos braços da esperança equilibrista, Aldir (ou: Eu vos entendo, Lima e Migliaccio...)



O Reconhecimento Infinito (1963) ~ René Magritte

Desde ontem à noite, fiquei para escrever este texto.
Não vou dizer que é algo fácil, porque não é - já afirmei aqui que a veia faladeira de antigamente anda tendo uma certa deficiência, que a necessidade externa e as demais prioridades fazem com que eu as deixe passar.

Mas, ao mesmo tempo, não é só essa a dificuldade deste texto.

Tem uma coisa pior: o sentimento da mediocridade de nossa existência, no caráter humano.
A compreensão, cada vez mais crescente, de como a nossa sociedade está doente, está chegando a níveis assustadores de crueldade e ignorância.

Aqui, pra minha cabecinha um tanto composta de vento (mas que pensa de vez em quando), a quarentena está fazendo uma separação natural. Para mim, hoje, existem dois tipos de gente:

1. As que tão fazendo o possível (mesmo se lascando financeira e emocionalmente) para se manter em casa o máximo que der (inclua aqui os que precisam ir pra rua, fazer serviço essencial e, após isso, voltam pro seu canto, pensando nos seus).

2. Os que não tão entendendo porcaria nenhuma do que tá acontecendo, e vai na conversa do que lhe é conveniente entender... Por egoísmo, por ingenuidade, ausência de amor ao próximo, por tanta carga negativa...

Eu - sem nenhuma pretensão de bancar a maravilhosa, a perfeita, o alecrim-dourado-que-nasceu-no-campo-sem-ser-semeado - escolhi o primeiro grupo. Estamos (eu e meu companheiro), há quase dois meses em um estado de espera dentro de casa. Saímos de casa apenas em caso de necessidade. Procurando saber dos seus. Preocupando-se com as questões ligadas aos nossos familiares que "a distância" (a locomoção até eles e o fato deles serem idosos, caso dos meus pais e nossas avós) torna complicado para que possamos ir nas casas. Vendo, via internet, a evolução da doença. Economizando no essencial.
Escolhemos este caminho porque sabemos muito bem o que vai acontecer se fingirmos que nada existe e mantermos nossa rotina de ônibus lotados, lidar com aglomerações em nosso ambiente de trabalho (somos professores): a doença nos pega e, especialmente, somos pobres. Temos limitações no campo da saúde - e o que acontece com um de nós se o outro cair?
Tá pensando, afinal, que está sendo fácil pra gente? Não, não tá. Facilita bastante o fato de que eu, nos últimos anos, reduzi bastante o modo "necessidade de falar sobre dores pessoais no Facebook". Mas o sentimento de angústia e medo, além de raiva, prosseguem aqui dentro.

RAIVA..
Isso mesmo.
Eu sinto raiva quando me dou conta de como tem gente que acredita que o vírus é jogo politico.
Eu sinto raiva de como, baseados nesta temática, essa gente acha que a vida dos outros é nada.
Eu sinto raiva do NEGACIONISMO da Covid-19.

E, digo logo, isso é culpa dessa cultura de acreditar que estamos preparados para questionar tudo, especialmente pelo advento da internet e da falsa ilusão do conhecimento fácil.

EU NÃO CONHEÇO TUDO, todo dia eu me dou conta disso.

Esta semana, tive a surpresa de duas mortes. E são por estas pessoas que a pintura de Magritte está aqui na postagem. Uma representação das duas vidas que foram embora, de duas vidas úteis, de dois grandes artistas.

Comecemos por Aldir Blanc.
Eu vou ser honesta, que muito pouco conhecia do Aldir Blanc na música, para além do seu dueto de composição com João Bosco... E, por isso, vou colocar esta música, que faz parte da temática deste texto:




Quando eu digo que não conheço tudo, essa música é parte disso.
Eu conheço a música desde pequena, minha mãe a ouvia.
Mas, o peso dela dentro da sua simbologia - a Anistia, em 1979? Isso, muito pouco.
Pouco, pouco!

Ah, Betinho, que falta você faz agora...
Um dos motivos pelo qual a música se tornou mais forte, é a história referente a ela: Na letra, Aldir mencionava a gente que sonhava com a "volta do irmão do Henfil" - o sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho - e de tanta gente "que partiu num rabo de foguete" (os exilados pela Ditadura Militar) e das "Marias e Clarices" (olha a referência sutil à morte de Vlado Herzog aí).
Segundo as histórias contadas durante esse processo de lembrar do falecido, soube que o Betinho considerada "O bêbado e a equilibrista" o chamado para seu retorno ao Brasil...
Parte da história desta música, que se encontra aqui, foi a que eu ouvi dos meus amigos mais conhecedores do Aldir... A parte, honestamente, que mais gostei da história.

(sim, existe um ponto em que eu sempre vibro em uma coisa dessas: a HUMANIDADE. Podem me chamar de romântica, mas dane-se)

Aldir Blanc morreu por conta da COVID-19. Tinha 73 anos. Já era idoso, grupo de risco, ia morrer em algum momento mesmo - as bocas negacionistas dizem, além do bom e velho questionamento "certeza de que foi por Corona?". 
Porque a atual pandemia tirou a capacidade de alguns de entender que estamos lidando com VIDAS, PESSOAS, FAMÍLIAS.


Dados de hoje de manhã.

264 milhões em todo o mundo. Mais do que a população do Brasil toda. E isso, considerando do começo do ano pra cá! No nosso caso em específico, 8 mil em dois meses, praticamente. 
Eu não gosto do soar alarmismo, mas, sim - são dados pesados de se ver.

Não é fácil ver pessoas debochando da Covid-19 como se fosse brincadeira, como se não fosse capaz de destruir vidas.
Mas, vou dar um exemplo bem "legal" de como as pessoas estão lidando. Ou melhor, a pessoa que se diz líder do nosso país:


Você sente o peso destas palavras? Sente o quão desnecessária se tornou a nossa vida perante este maior exemplo de negacionista da doença?

Enfim... É esse peso que leva ao Flávio Migliaccio.


Para quem assiste novelas, como eu admito assistir, o Flávio era aquele ator supertalentoso, experiente, que, em personagens secundários, dava liga a uma novela. Lembro dele dando à personagem de Natália do Vale, em "A Próxima Vítima", a alcunha de "Bonitona do Morumbi". A presença crescente do "Seu Chalita", o dono do bar na série "Tapas e Beijos". Sem contar a referência histórica na programação infantil da Globo, fazendo o personagem Xerife (década de 1970).

Flávio foi encontrado morto em seu sítio. Suicídio. Não me interessa como foi, importa que, na carta divulgada pela imprensa, ele dizia o quão mal estava em ver a atual conjuntura do Brasil, em ver que tudo aquilo que ele viveu, que ele lutou, com sua arte para denunciar e combater, tudo isso retomou com força total. Com a anuência de uma população que se agarra em troços inúteis como "meu pai viveu na ditadura e era uma beleza de vida, sem crimes, sem maldade"... Sim... Sei... Zé Pequeno e Mané Galinha eram bandidos na década de 1970. O Bandido da Luz Vermelha aterrorizou São Paulo na década de 1960. Não era comum você ser atingido por ela, como também não era comum os programas que exaltam o crime e a morte como matéria cotidiana em jornais e televisão, como vimos eclodir com força nos anos 1990 e 2000. Essa é a diferença.
Mas, voltando ao Flávio... Lima fez um depoimento que, para mim, doeu, machucou, emocionou muito.


 E, graças ao depoimento do Lima Duarte - que é o homem atrelado à história da televisão, que está lá desde o seu primeiro programa, 90 anos de existência... Graças a esta fala emocionada, pude perceber que eu não conheço o Flávio. Um grande lutador das artes, um dos participantes do Teatro de Arena... Quem sabe da história da ditadura militar, sabe da profunda perseguição que houve às artes de uma forma geral. O único gênero que se manteve durante este tempo foi a novela; mas, se você olhar direitinho, verá que esse mesmo gênero dramatúrgico sofreu grandes cortes - Roque Santeiro é o exemplo mais emblemático, onde o Lima Duarte esteve presente...

É essa mesma arte, é essa mesma liberdade que a arte inspira - goste ou não dela, como eu posso me posicionar - é isso que as pessoas combatem hoje. Olhem pra como Regina Duarte, que fez parte deste tempo, embora sempre estivesse à parte, o que ela faz pela arte! Pouco, quase nada, até ridicularizada ela o é.

O depoimento de Lima - pasmem! - foi encarado como GROSSEIRO por algumas pessoas. OI? Em geral, pessoas que acham que tudo o que colocam "é opinião" e que - volto aqui ao ponto da ilusão virtual de conhecimento - isso vale mais do que a História. É a ignorância da História, ou, pior ainda, a busca de explicações mais compatíveis para ela, que nos trouxeram a esta situação.

Eu também entendo o Flávio. Na minha insignificância, comparada à ele, eu penso todos os dias. Ainda não tive, graças a Deus - e oro para não ter - perdas por conta do Covid-19. Mas isso não me impede de sofrer pelos outros, nisso valeu a minha formação cristã - de me importar com o próximo. Será que eu tenho que esperar que alguém que eu ame morra para que eu me dê conta da situação que vivo? Não, eu não esperei por isso. Eu ainda me importo com a humanidade. Eu ainda me importo com os outros. Eu ainda estou amparada por minha fé de que tudo vai passar e de que podemos recomeçar.
Mas, eu entendo o Flávio. Não romantizo o suicídio, não é uma decisão fácil se dar conta de que a vida não tem solução, de escolher não seguir vivendo - sei disso das marcas que carrego do passado. Eu não posso esperar de um homem de 85 anos - que tinha praticamente a minha idade durante a época da opressão - que ele aguente todo este retrocesso, este destempero, este egocentrismo do atual governo, sem poder fazer nada. Não posso esperar que este mesmo homem veja o povo rindo de tudo aquilo que ele e os seus colegas de trabalho atravessaram em nome da liberdade. Flávio teve o seu tempo de ser corajoso. E eu te agradeço, Flávio. Eu te agradeço, Lima. Eu te agradeço, Aldir.

Enquanto, aqui e agora, escrevo repleta de lágrimas, penso também na esperança. A esperança equilibrista que me ampara e segue comigo nos últimos dias. Também tô lutando, tô lutando com meus companheiros de trabalho, de escola. Começamos, desde dias para além desta segunda, onde começamos a dar aulas virtuais, fazer videoaulas, montar exercícios... Enquanto isso, lendo sobre pessoas que duvidam, que não dão valor à luta que travamos, juntos de - mesmo em nossas dificuldades sobre as atuais tecnologias, onde eu mesma posso me incluir (tá achando que é fácil filmar, manolo?) - trazer conhecimento às crianças e jovens. 
Sabemos, professores que somos, que não é fácil. Mas...

"A esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista
tem que continuar."

A única arte que domino, que esteve no meu coração desde menina, é a arte da Educação. E, com essa arte, continuarei lutando. Não sou covarde, não tô fugindo do trabalho. Eu tô lutando. Nós estamos lutando. E, Deus quiser, continuaremos vivos para poder recomeçar. 
Em nome de (eu digo por mim, não me responsabilizo por ninguém) todos aqueles que lutaram antes de mim. Eu vou lutar, com minhas armas, pela Educação.
E, só desejo a vocês, hoje, força e esperança. 

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Será que você também aguenta esse aqui?

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