sábado, 15 de julho de 2017

#Dica(in)sana: Por que (ainda) precisamos ler a trilogia "O Estudante"?



"Meu nome é Roberto. Tenho quinze anos. Estou escrevendo a vocês,
porque preciso desabafar à grande dor que me queima lá dentro. Poderia
desabafar com um parente qualquer. Mas, a mágoa é grande demais, tão
grande que transborda de meu coração e enche o universo. Então fiquei
horas e horas em meu quarto, indo de um lado para outro, num desespero
sem fim, até que uma luz clareou meu cérebro: a ajuda só poderia vir dos
colegas de todos os colégios de meu país. Então sentei-me e comecei a lhes
escrever. Vocês, por favor, perdoem a letra trêmula que não vem de meu
estado emocional, mas sim da terra úmida que ainda cai de minha mão ,
apesar de já fazer horas que as enchi e só não tive coragem de jogar sobre o
caixão de meu irmão."

(CARRARO, Adelaide. "O Estudante", página 4)

Para ler a história completa, clique aqui.



Possivelmente, eu faço parte da última geração em que este livro, datado de 1975 e várias vezes editado, era uma leitura primordial. Ou talvez tal facilidade tenha vindo dos privilégios que tive ao longo da minha formação literária (mãe professora e depois trabalhando em biblioteca, acesso, na escola do meu Fundamental 2, a um riquíssimo acervo, meus anos de mediadora de leitura e o curso de Letras, atualmente). Não sei.
Li-o, pela primeira vez, aos 13 anos, não lembro bem quem foi a fonte (O CICM? Minha mãe? A memória não me ajuda). Lembro de como a leitura me fascinava e me chocava ao mesmo tempo, vendo a história de uma família rica, bem ajustada, com dois filhos legítimos e uma filha adotiva; de como esta família foi afetada com a entrada do filho mais velho (inicialmente um modelo de bom filho, irmão, amigo, pessoa) no submundo das drogas e do tráfico.
A história versava sobre como a adolescência (suas dúvidas e suas relações sociais) vira alvo fácil para motivar o vício nas drogas, e de como quem está no topo da cadeia dos entorpecentes visualiza quem é colocado dentro deste universo.
Vide um trecho:

"- Você acredita que o viciado, depois de tomar drogas, se sente forte, corajoso e vê coisas lindas,
mais coloridas etc.?
- Nem continue, pois eu estou rodeado de viciados, todos os meus guardas são viciados e lhe posso
garantir que qualquer viciado em drogas torna-se sonolento permanentemente, fraco nos estudos e não tem vontade de sair do lugar, fica mentiroso, grosseiro, descontrolado, insolente e sexualmente
fraco. Não respeita nem Deus, pais ou família, enfim podemos dizer que se torna um animal. Já conheci diversos viciados que se tornaram criminosos. O viciado esquece de si mesmo e daí sobrevêm grande desnutrição acompanhada pela falta de higiene, levando-o mais cedo para a morte. O único pensamento do viciado é arranjar dinheiro para comprar droga. Quando não consegue com os pais, parentes e amigos, ele vira ladrão. 
[...]
- Não entendo como você, conhecendo todos esses tétricos males, ainda continua com esse monstruoso comércio. Você não sente dó nem piedade por esses estudantes?
- Não. Sinceramente, eu os desprezo, porque eles é que estão se destruindo. Se eles não quisessem se
viciar, não se viciariam. Duvido que algum traficante convença meus filhos a se viciarem, a provar drogas. Os meus filhos têm um grande caráter e não se deixarão iludir, não são uns frustrados como esses idiotas estudantes que acreditam que a droga poderá fazê-los corajosos, machões."

(páginas 86 a 87)

E de que tipo de viciado estamos falando?
Vocês, com certeza, sabem dos viciados da Cracolândia. Já viram pelas ruas algum jovem/adulto/idoso em estado de prostração, ou o que chamaríamos vulgarmente de "podridão humana", "farrapo", o que valha. Viram o caso de Andreas Von Richthofen, a quem vemos o vício como marca da tragédia efetuada por sua irmã.
O debate de descriminalização das drogas está sempre sendo levado à baila. Não, eu não estou aqui fazendo apologia a quem use qualquer tipo de droga, mas lembremos que álcool ou cigarro são drogas, e drogas legais - cujo excesso/vício é um problema de saúde e não jurídico. No momento em que pensamos no quantitativo de pessoas que experimentaram ou se usam de alguma substância ilícita - e não se iluda, a quantidade é maior do que imagina, dê uma pesquisada no Google -, podemos notar que é QUASE impossível impedir o acesso às drogas, especialmente aos adolescentes, sempre em busca de coisas novas. (botei o quase em destaque para que lembremos das exceções, sempre das exceções).
Quem lucra com o tráfico? Não é o viciado, que gasta, gasta e acaba por não ser tratado de forma devida, é marginalizado. Não é o traficante menor, o pé-de-chinelo que sustenta seu vício ou o que acaba virando "chefe de favela/boca". São aqueles de cima, alguns que estão inseridos até mesmo dentro da nossa política (cês lembram do helicóptero de cocaína?). É o tráfico que intensifica, transtorna e mata. E é contra o tráfico que devemos focar nossa maior atenção.

No entanto, enganam-se quem pensa que a história aqui termina. "O Estudante" ganhou duas sequências, com o narrador-protagonista Roberto contando sobre sua família após a morte do irmão (sim, é spoiler, mas que eu já dei a dica logo no comecinho, né?)


O segundo livro, com o subtítulo "Mamãe Querida", aborda temas tão espinhosos quanto a questão das drogas: a depressão, centrada na figura da mãe e do pai de Roberto; a defesa por um tratamento humanizado frente aos descuidados dos hospitais psiquiátricos (esta parte vivida por Lídia, a mãe); o crescimento acelerado de Roberto, assumindo praticamente toda a família no período; a rejeição de uma escola de elite à Rosana, filha adotiva escolhida por Renato (o filho morto), por conta de sua cor (ela sendo mulata), mais as descobertas acerca da origem da menina. A história também enfoca com mais destaque o crescimento da jovem, que começa a desenvolver a faceta elitista (dando uma lida sobre Adelaide Carraro, percebi que ela tem obras bem focadas neste tema, o que faz dela considerada uma "escritora maldita") do orgulho, esnobismo e até mesmo do racismo, antes de se descobrir adotada. Sim, coloquemos a violência (sequestro e meninos de rua) dentro do enredo, já que são cruciais para o desenvolvimento dos acontecimentos com a família ao longo dos anos.
Não tenho ideia do ano de publicação deste livro, mas suponho que foi pelos anos 80 - visto que a história pega o período de tempo entre a primeira infância até os 15 anos de Rosana.
Nesta obra, os criados da família - Zefa, a cozinheira, e Walter, o motorista que vira o melhor amigo do protagonista - são personagens de destaque.

Mas, obviamente, vem mais emoções por aí.


O terceiro livro, com o subtítulo "Por um Brasil sem racismo", tem (que coisa óbvia, não?) o racismo como tema principal. Agora, temos Roberto, um adulto, e Rosana. O amor entre os irmãos adotivos, que acaba em casamento, é estremecido graças à personalidade da esposa, que não aceita ser considerada negra, renega a mãe biológica e a própria filha, nascida no meio da trama. Temos mais três personagens importantes dentro da história: Vítor, que aparece no livro anterior, mas aqui é de extrema importância para o final feliz da trama; Alex, o primeiro namorado de Rosana e a imagem fiel da alta sociedade ególatra e racista e Ângela, com quem Roberto se envolve e antagonista maior da irmã adotiva e depois esposa dele.
Este livro (dos três, o único que possuo e ainda mantenho comigo) data de 1992, mesmo ano do falecimento da escritora de câncer. A mensagem inserida está bastante focada no confronto entre as regras sociais e o amor independente da cor e condição social (podemos colocar a questão Deus na história, visto que é na fé que as situações são enfrentadas).

Nas três obras, Adelaide Carraro não se coloca como escritora, mas como alguém que transcreve o narrador-personagem. O diálogo entre os dois dá ao texto um tom mais informal, como se os dois, de certa forma, dialogassem pela narrativa.

"Como lhe disse, escritora, é uma narração mal escrita, pois meus quinze anos estão bem lá embaixo. Não tenho mais aquela veia poética ou narrativa, mas estou me esforçando. Não vá dizer que o livro está chato, hein?!"
(CARRARO, Adelaide. "O Estudante 3", página 58)

Mas, aí retorno à pergunta-título: Por que ainda temos a necessidade de ler a trilogia, considerando que o último livro possui mais de duas décadas de distância dos nossos adolescentes?

Pensemos:
Mudamos nossa visão sobre o tráfico?
Mudamos nossa visão sobre os problemas psiquiátricos?
Mudamos nossa visão sobre o esnobismo das elites?
Mudamos nossa visão sobre a violência?
Mudamos nossa visão sobre o racismo?

Se houver a resposta "não" a pelo menos uma destas perguntas, leia todos estes livros.
Infelizmente, em pdf, achei apenas um primeiro...
Mas é um começo.
E vai valer a pena.


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