sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Revirando o baú - Textos de Carpinejar

Para que bem comecemos hoje, explico:
Numa das minhas visitas a meus antigos blog's, andei reparando que tem muita coisa boa enclausurada em espaços que não mais exploro. Fiz isso no meu Vibeflog, e agora pego o meu antigo espaço no Windows Live, que não me interessa muito, mas foi meu companheiro em boas e más horas.
Por estas e por outras, vou atualizar alguns dos antigos posts...por saber que eles tem - e muita! - relevância.
Boa encarar?


Hoje, como um bom revival, estou repostando (ainda que em outro espaço) antigos textos de Carpinejar que me marcaram muito. Que seja de bom agrado a tod@s.



NÃO SE COME UMA MULHER

Pintura de Egon Schiele
Fabrício Carpinejar



Não sou adepto de enxergar o mundo como se fosse a primeira vez, muito menos enxergar o mundo como a última vez. Não caio na conversa fiada de estréia e de despedida. Despedir não é terminar - é procurar iniciar de um jeito diferente.

Sou homem do durante. Do meio. Do decorrer. Nada contra quem pensa o contrário, mas é um pouco de soberba inaugurar ou fechar o mundo.

Quando se ama uma mulher, é preciso a safadeza, a vontade sem pudor, o desejo diabólico, a tara. Não se conter, não se represar. A ânsia, a violência e a obsessão são permitidas. Mas tudo será grosseria desacompanhada da pureza.

Pureza é autenticidade. Não fingir, não disfarçar, não dizer o que não está sentindo. Já ouvi muito que sexo não é seguir a cabeça e deixar as coisas aconteceram. Sexo seria não pensar. Não concordo, sexo não é inconseqüência, é conseqüência da gentileza. Conseqüência de ouvir o sussurro, de ser educado com o sussurro e permanecer sussurrando. Perder o pudor, não perder o respeito. Perder a timidez, não perder o cuidado.

Sexo é pensar, como que não? E fazer o corpo entender a pronúncia mais do que compreender a palavra. Como se não houvesse outra chance de ser feliz. Não a derradeira chance, e sim a chance.

Uma mulher está sempre iniciando o seu corpo. Toda a noite é um outro início. Toda a noite é um outro homem ainda que seja o mesmo. Não se transa com uma mulher pela repetição. Seu prazer não está aprendendo a ler. Seu prazer escreve - e nem sempre num idioma conhecido.

Ela pode ficar excitada com uma frase. Não é colocando de repente a mão na coxa. Ela pode ficar excitada com uma música ou com uma expressão do rosto. Não é colocando a mão na sua blusa. Mulher é hesitação, é véspera, é apuro do ouvido.

Antever que aquelas costas evoluem nas mãos como um giz de cera. Reparar que a boca incha com os beijos, que o pescoço não tem linha divisória com os seios, que a cintura é uma escada em espiral.

É comum o homem, ao encontrar sua satisfação, recorrer a uma fórmula. Depois de sucesso na intimidade, acredita que toda mulher terá igual cartografia, igual trepidação. Se mordiscar os mamilos deu certo com uma, lá vai ele tentar de novo no futuro. Se brincou de chamá-la de puta, repete a fantasia interminavelmente. Assim o homem não vê a mulher, vê as mulheres e escurece a nudez junto do quarto.

Amar não é uma regra, e sim onde a regra se quebra.

Não se come uma mulher, ela é que se devora.



  PAPAI-MAMÃE JÁ TIVERAM FILHOS
Arte de Allen Jones
Fabrício Carpinejar



Já me recomendaram muito não conversar depois do sexo e ainda mais sobre o sexo. Que termina com o mistério. É uma regra do Dom Juan.

Não caio na ladainha. Sou um narrador mesmo quando estou de folga, sofro de cistite verbal. Desconfio que o laconismo signifique preguiça sob o disfarce de confiança. Na hora em que alguma mulher pede: "nem precisamos falar". Ou quando afirma que "o silêncio diz tudo", abro um parêntese. (Por favor, o silêncio não diz absolutamente nada. É unicamente silêncio. Não é tradutor de quem não fala).

É uma espécie de covardia abençoada, uma forma de cada um viver para seu lado e não afiançar a solidão. Não acho que a voz estrague o clima, que o diálogo diminua a intensidade, que abrir o que se gosta é assassinar a relação. Qual é o problema de se expor, identificar suas taras, ir além da respiração e recomeçar? Deixar rolar serve para bola de futebol. Não para o corpo que pretende fixar leveza e se deliciar.

Que diga sem pudor que adora sexo oral, que adora prender os mamilos, que adora dar a bunda, que adora ser pega em flagrante ou se envolver com estranhos. Casais temem o rosto um do outro, temem confiar segredos, temem a audiência pública de suas fantasias. Temem ser ousados demais ou travados e ficam no meio-termo, aguardando que a coragem compareça na próxima vez. Um crime ser educado quando a nudez desafora. Restrições combinam com remédio, não com a saúde.

Ao sacrificar a fala, acomoda-se na aprovação equivocada. Parece que a transa foi tão ruim que não permite comentários. Ou que alcançou sua condição sublime, que perdeu a língua.

Um tabu crer que o sexo foi feito para a concordância, que deve-se embrulhar o amor para comer sozinho em casa. Sexo não é uma conclusão fechada. Não é um julgamento individual. É uma sentença a dois, um júri popular. Que ambos melhorem dentro e fora do beijo.

Sexo não combina com o silêncio, sexo combina com o sussurro, com o gemido, com o palavrão. É mais teatro do que livro. Não para ser lido quietinho. Pede a expressão cênica.

No sexo, somos atores do próprio desejo. Uns canastrões, outros bem mais convincentes. Uns esperando o Godot, outros falando pelos cotovelos como as personagens de Lorca.

Vou viver pela boca.
 

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