terça-feira, 1 de março de 2011

Uma homenagem a Moacyr Scliar.

(1937-2011) UM DOS MAIORES ESCRITORES DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA.

Moacyr, muito obrigada. Por ter nascido, por teres sido brasileiro, por teres sido escritor, por teres criado textos tão úteis e tão belos, por teres sido meu mestre nos meus momentos de mediação de leitura, por teres me feito rir a cada crônica, a cada tirada sua... Por teres existido e sido uma grande alegria para aqueles que te leram.
És grande inspiração para mim, agora e sempre.
Obrigada!

Como uma homenagem, deixarei para minhas almas caridosas a crônica que eu mais amava desse grande escritor.





ANTES E DEPOIS
(Da coletânia "Um país chamado infância", da coleção Para Gostar de Ler, Ed. Ática)

Einstein passou à História por provar que tudo é relativo, mas disso sabe qualquer garoto: as frases ditas a uma criança são exatamente o contrário do que ela ouvirá trinta anos depois. Basta comparar a coluna um com a coluna dois, para que a gente se convença de quanto é absurda a loteria da vida. Para a infância, não há nada mais diferente que o “antes” e o “depois”.


Na infância
Come, guri. Se você não comer, vai acabar doente. Anda, come o bife, está tão bom. Olha, se você comer, nem que seja a metade, eu te compro o Ferrorama.


Trinta anos depois
Mas você já está comendo de novo? Recém jantou e já está na geladeira? Mas que vergonha, homem. Olha a tua barriga. Coisa mais indecente. Quando é que você vai dar um jeito nisto? Sei, sei, amanhã você começa a dieta. Já ouvi esta história mil vezes.

Na infância
Vai no colégio, sim. Que história é esta de ficar em casa? E não vem me dizer que você está com febre, porque é mentira. Tem de ir ao colégio para estudar e ser alguém na vida.


Trinta anos depois
Faculdade? Depois de velho você quer voltar para a faculdade? Desista, meu caro, sua cabeça não dá mais, você tem de ficar no seu emprego, que além de tudo é tranqüilo. E depois, para que quer você um diploma? Para ser mais um profissional liberal desempregado? Nada disto. Não vai para a faculdade, não. Fica em
casa que é melhor.

Na infância
Olha aí, todos os teus brinquedos espalhados pelo chão. É por isso que você perde tudo e quebra tudo. Olha: se você não juntar esses brinquedos em um minuto vai tudo para o lixo, ouviu? Para o lixo ou para o filho do zelador. Você não sabe valorizar as coisas que tem. Está na hora de aprender. Essas coisas custam dinheiro e dinheiro não se acha na rua.


Trinta anos depois
Essa sua obsessão pela ordem, pela limpeza é apenas uma defesa contra a ansiedade. No fundo você é uma criança desamparada querendo harmonizar as partes em conflito de sua mente. Mas por hoje vamos ficar por aqui. A propósito: a partir da semana que vem vamos ter um aumento. É esse processo inflacionário que estamos vivendo. As coisas estão custando um dinheirão.

Na infância
Agora chega. Desliga esta TV e vai dormir, anda. Amanhã você precisa levantar cedo para ir ao colégio. Não, não tem nada de mais cinco minutinhos. Você ferveu o dia inteiro, agora tem de descansar.


Trinta anos depois
Dormir? Você já vai dormir? Mas você não tinha dito que iríamos ao cinema hoje? Está bom, eu sei que você teve um dia cheio no escritório, que está cansado e com dor de cabeça. Mas a gente também precisa se divertir um pouco. Faz um mês que não saímos de casa. Foi para isto que a gente casou? Quando éramos noivos você não queria saber de dormir, sempre dizia que a noite era uma criança e que ainda dava para fazer mais programa. Vamos lá, homem, te veste e vamos sair.

Na infância
Nada disto. Você não vai andar de bicicleta. Agora está na hora de jantar. Além disto andar de bicicleta é perigoso. Você passa na entrada de garagens, vem um carro dirigido por um desses malucos que andam soltos por aí, te atropela e era uma vez um menino.


Trinta anos depois
Você precisa fazer exercício, meu caro. Você leva uma vida muito sedentária, todo o dia sentado numa cadeira, no escritório. Isto é perigoso. Afinal, você já entrou na faixa etária do enfarte. E exercício é bom para descarregar a tensão. Por que você não anda de bicicleta, por exemplo? Olha, até que é divertido.

Na infância
Olha só as tuas roupas. Você suja tudo, rasga tudo. Esses tênis não têm um mês ainda, e já dá para jogar fora. Assim não há dinheiro que chegue. Por que é que você não anda limpinho e arrumado como o filho do nosso vizinho aqui de cima? Aquele, sim, é um menino que dá gosto de olhar.


Trinta anos depois
Sim, eu sei que você precisa se apresentar bem, que o visual é tudo, especialmente em sua profissão. Mas eu acho que você exagera. Eu acho que você anda elegante demais. E isto para mim só pode ter uma explicação: você anda tendo casos por aí. Elegância demais é coisa suspeita.

Na infância
Você passa o dia inteiro na frente desta TV. Por que é que você não pega um livro e vai ler um pouco? Eu sei que ler é mais difícil que olhar TV, mas em compensação não há coisa melhor para desenvolver a imaginação. Eu, quando tinha a sua idade, já tinha lido todo o Monteiro Lobato, as histórias infantis do Érico
Verissimo, tudo. E isto me ajudou muito. Imaginação é uma coisa preciosa.


Trinta anos depois
E você acha que o plano econômico vai dar certo? Você tem muita imaginação, meu caro. Aliás, é seu problema: excesso de imaginação. Um administrador, um técnico, não pode ter tanta imaginação. Você está fora da realidade, você não sabe o que as pessoas querem, o que elas estão pensando. Olha, vou te dar uma idéia: fique assistindo TV uns dias. Não há espelho mais fiel da realidade brasileira do que a TV. Tudo que aprendi devo à TV. Se subi na vida foi graças à TV.

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